Face mais perversa da fumicultura é o emprego de mão-de-obra infantil associado ao empobrecimento das famílias

Entrevista publicada pelo IHO On-line do Instituto Humanitas Unisinos da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS

“O endividamento dos produtores é outra crueldade dos problemas da fumicultura no Sul do Brasil. Os mais conhecidos incluem os riscos à saúde e os danos ao meio ambiente, resultantes do uso inapropriado de pesticidas e do desmatamento para usar a lenha que seca a produção”, afirmou o advogado Guilherme Eidt, ao explicar ao IHO On-line como vê a relação entre os governos e as empresas fumageiras e detalhar a realidade de quem vive da plantação de fumo.
Guilherme Eidt Gonçalves de Almeida é graduado em direito pela Universidade Estadual de Londrina, onde realizou a pesquisa A Constitucionalização da função sócio-econômica-ambiental.
É especialista em Análise Ambiental pela Universidade Federal do Paraná, e mestre em direito pela Universidade de Brasília.
Eidt atua na Aliança para Controle do Tabagismo no Brasil (ACTBr) e é autor de "Fumo: servidão moderna e violações de direitos humanos"(Curitiba: Terra de Direitos, 2005).

IHU On-Line – Como você vê o incentivo dado pelo governo do Rio Grande do Sul à Souza Cruz?
Guilherme Eidt – Trata-se de uma confusão que há muito se verifica entre o público e o privado.
É o ranço patrimonialista que domina a estrutura burocrática do aparelho estatal em todos os poderes e esferas de governo.
O Estado é parceiro, senão preferencial, necessário, do capital privado.
O que se viu mundo afora, com o socorro às instituições financeiras e corporações transnacionais, em nada contradiz os procedimentos deliberativos das democracias modernas.
Os Estados nacionais deixaram de ser tão só paradigmas de sobrecodificação e se constituem em modelos de realização da lógica do mercado, dos fluxos descodificados que lhe são próprios.
Os incentivos à Souza Cruz são de longa data conferidos não só pelo Rio Grande do Sul. Também o Estado brasileiro já colocou bilhões de reais neste setor com financiamentos subvencionados através dos bancos públicos, créditos e isenções tributárias, enquanto o Programa de Diversificação em Áreas Cultivadas com Fumo, do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), teve apenas R$ 10 milhões em dois anos para promover assistência técnica e aquisição de alimentos.
A prioridade fica clara quando se observa a participação do Ministério da Agricultura nas reuniões do grupo de trabalho instalado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para estabelecer diretrizes aos artigos 17 e 18 da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (CQCT), que buscam alternativas sustentáveis à fumicultura, ponderando aspectos socioambientais, de respeito aos direitos humanos e econômicos, para tão só defender o país de qualquer medida que possa impactar negativamente suas exportações de folhas de fumo.

O Brasil alterna com a Índia a segunda ou terceira posição no ranking dos maiores produtores de fumo, e é o principal exportador mundial: 85% do que produz é exportado e, através da famosa Lei Kandir, não paga impostos, ou melhor, recebe em créditos tributários aquilo que paga.
Essa é uma grande polêmica nos estados da região Sul, porque as fumageiras reclamam esses repasses e ameaçam se retirar para outros estados quando ocorrem atrasos.

Sendo um dos estados que mais produz fumo, por que o Rio Grande do Sul dá incentivo para indústrias de cigarro?

Guilherme Eidt – Estrutura fundiária assentada em pequenas propriedades, com forte presença de mão-de-obra especializada no cultivo do fumo e uma infra-estrutura incipiente de produção e comercialização mantida pelo núcleo de empresas nacionais no período anterior à década de 1970, foram condições prévias para a constituição do arranjo produtivo fumageiro na região do Vale do Rio Pardo.
A partir da década de 1970, o setor experimentou uma desnacionalização e forte concentração de capital transnacional.
Inicia-se um processo conhecido como modernização conservadora, por ter favorecido aos antigos e modernos setores dominantes da agricultura latino-americana, em detrimento das maiorias camponesas.
Trouxe crescente participação do setor privado na geração e transferência de tecnologia; sucessivas inovações e rápido incremento das exportações agropecuárias; desenvolvimento do comércio agrícola em grande escala e mudança dos sistemas de produção; influindo na própria concepção das políticas públicas.
Nesses territórios integrados ao mercado internacional, bem dizer, verifica-se a incidência daquilo que o geógrafo Milton Santos chama de “lógicas exógenas”, que os faz funcionar sob um regime obediente a preocupações subordinadas a racionalidades distantes, externas em relação à área de efetiva atuação das grandes corporações transnacionais do tabaco.
Lógicas próprias dos setores e empresas globais que as mobilizam e criam, assim, situações de alienação que escapam à regulação local ou nacional em todos os domínios da vida, influenciando o comportamento da moeda, do crédito, do gasto público e do emprego, incidindo sobre o funcionamento da economia regional e urbana, por intermédio de suas relações determinantes com o comércio, a indústria, os transportes e os serviços.
Pode-se dizer que existe um discurso da verdade que é dominado pelas indústrias fumageiras, com apoio da mídia e das autoridades públicas que insistem em sustentar com palavras vazias o imaginário de desenvolvimento e prosperidade que teriam trazido para a região.
Pesquisa de 2006, realizada pelo Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais (DESER), atestou que as principais regiões produtoras de fumo apresentam Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) abaixo da média estadual, nos três estados da região Sul.
Para compreender este quadro é necessário verificar que nos municípios fumicultores os indicadores de frequência escolar e renda sempre são menores que naqueles não produtores de fumo; ou seja, onde se produz fumo com certo grau de importância, as pessoas têm menor renda e frequentam menos a escola; e, inclusive, onde quase com exclusividade se produz fumo, a expectativa de vida é menor.

Qual a realidade dos fumicultores hoje? Quais são os principais problemas que eles enfrentam?
Guilherme Eidt – O MDA encaminhou nota técnica à segunda seção da Conferência das Partes (COP2) da Convenção-Quadro, realizada em 2007 pela OMS em Bangcoc, onde reconhece evidências substanciais dos efeitos nocivos do controle exercido pela indústria do fumo sobre a organização da cadeia agroindustrial do tabaco.
O modelo sugere inúmeras facilidades aos agricultores, principalmente para aqueles descapitalizados que necessitam recorrer ao financiamento direto ou avalizado pelas indústrias ao adquirir o pacote tecnológico, num esquema de venda casada de utensílios e implementos agrícolas.
Na cadeia produtiva do fumo não é quem vende que faz o preço.
A fumageira é que decide o valor do produto que irá comprar, ao manipular a classificação e estimular o acúmulo de dívidas que mantém o fumicultor vinculado para safras futuras.
O fumicultor pode recusar as condições dadas para a comercialização, mas, como sua lavoura foi dada em penhora para a garantia da dívida, as fumageiras conseguem ordem judicial para arrestá-la, valendo-se das notas promissórias assinadas em branco no momento em que o agricultor firma o contrato.
É esse o esquema que está por detrás da liderança mundial do Brasil no setor de exportação de fumo em folhas: a sujeição do pequeno agricultor a uma verdadeira servidão moderna.

E o endividamento dos fumicultores é apenas um dos problemas.
Os mais conhecidos incluem os riscos à saúde e os danos ao meio ambiente, resultantes do uso inapropriado de pesticidas e do desmatamento para usar a lenha que seca a produção.
A dificuldade em quantificar os casos de intoxicações ligados à fumicultura decorre de sistemas de notificação toxicológica incipientes e do pouco preparo dos profissionais de saúde para correlacionarem os sintomas e as causas.
O mesmo se observa para a doença da folha do tabaco, provocada pela absorção transdérmica de nicotina, que apresenta toda uma sintomatologia associada (prostração, fraqueza, vômitos, dores estomacais, musculares e de cabeça, tremores, taquicardia, insônia, depressão) pouco diagnosticada e relacionada com a exposição e manejo das folhas de fumo.
A face mais perversa da fumicultura é o emprego da mão-de-obra infantil associado ao empobrecimento das famílias e ao uso extensivo do trabalho familiar no cultivo do tabaco.
É comum relatos de professores da rede pública de ensino que atendem escolas nas áreas rurais indicando o déficit cognitivo de crianças que trabalham na lida com o fumo, além da evasão escolar.
Pesquisa que realizei junto com a Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos, em parceria com a Universidade de Brasília, aponta que as crianças trabalham em jornadas que chegam a mais de dez horas por dia na época da colheita e da secagem do fumo.
Elas absorvem quantidades de nicotina no organismo exorbitantes, semelhantes a uma pessoa fumante.
Para fazer frente a estas e outras situações, em dezembro de 2007, o Ministério Público do Trabalho (MPT) da 9ª e da 12ª Região interpuseram, ao todo, 18 Ações Civis Públicas na Justiça do Trabalho dos Estados do Paraná e Santa Catarina, contra as principais indústrias atuantes no setor fumageiro, bem como contra o Sindifumo e a Afubra. No Rio Grande do Sul uma articulação das fumageiras com o MPT local impediu que as ações também fossem interpostas no estado.

Que alternativas o senhor propõe à fumicultura em relação aos aspectos socioambientais, de direitos humanos e econômicos no que diz respeito à produção no país?
Guilherme Eidt – Os fumicultores vivem em um modo peculiar e doloroso de participação na sociedade, em que são privados das condições básicas de inserção social, definidas por valores que o próprio capitalismo proclama, como o direito à igualdade, ao bem-estar e ao acesso pleno aos bens que essa sociedade é capaz de produzir.
É o que José de Souza Martins chama de “inclusão perversa” em realidade que não priva em termos absolutos, nem exclui de fato, mas simula pertencimento numa realidade de padecimentos e privações.
A capacidade de resistência dos pequenos agricultores que plantam tabaco é ainda condicionada pelo vínculo e pela dependência socioeconômica frente às indústrias do sistema de integração rural. Esse é o principal obstáculo para um programa de diversificação de atividades agrícolas e não-agrícolas que atenda aos fumicultores.
Existe grupo de trabalho no âmbito da OMS para estabelecer as diretrizes que orientarão as políticas públicas no sentido de buscar alternativas à fumicultura.
A primeira reunião desse grupo foi em Brasília (2007), a segunda foi na Cidade do México (2008) e a terceira será em setembro deste ano em Nova Deli, na Índia.
Está claro para os países membros que cabe olhar a situação através de variada gama de indicadores de sustentabilidade, além da rentabilidade para os agricultores.
Aspectos que norteiam este trabalho ponderam o impacto das atividades produtivas no meio ambiente (solo, ar, fauna, flora, recursos hídricos), na saúde dos trabalhadores, das pessoas e das comunidades, no planejamento e na dinâmica de desenvolvimento territorial, com diversificação dos meios de vida e o respeito aos valores e princípios dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais.
A agroecologia e os sistemas agroflorestais apresentam-se como horizontes nesse caminho. Todavia, ainda há o que ser trilhado para chegarmos à condição de oferecer uma resposta a essa pergunta.
São muitas as potencialidades que podem orientar a construção coletiva de alternativas ao modelo agrícola decorrente da modernização conservadora de que falávamos antes. E essas potencialidades encontram-se nas virtudes de cada território.
Metodologias são importantes por retratar a experiência acumulada, mas é preciso trabalhar as políticas públicas em conjunto com as forças e saberes locais, adaptar os programas de governo para atender as circunstâncias que emergem a cada acontecimento, e estabelecer linhas de fuga para evitar incorrer na repetição de cadeias produtivas estéreis, que fazem dóceis os corpos dos trabalhadores e os abandonam à sorte no velho mercado, eivado dos mesmos e corruptos vícios.
Estimular nova economia, que promova vínculos criativos, fraternos e solidários entre trabalhadores e consumidores, é uma saída na qual vale investir.
O caminho não é trocar banana por manga, caqui por abacaxi, chuchu por maracujá, nem fumo por tomate.
Agrofloresta não é plantar girassol no meio de eucaliptos. É muito mais do que isso: exige transformações em níveis mais profundos do que esses.
Requer comprometimento de gestores e autoridades públicas hoje ainda inexistentes.
As ações do Programa de Diversificação do MDA para as áreas cultivadas com tabaco sequer chegam a ser paliativas. São ousadas, sim, estão no rumo adequado, mas precisam ganhar força e serem valorizadas, primeiro, dentro do próprio governo para conseguirem chegar às pessoas e comunidades.

Na cultura do fumo, qual é a média de agrotóxicos utilizada nas lavouras?
Guilherme Eidt – Não é nem a quantidade utilizada que é o mal. É mais um grande negócio de interesse comercial dentro do sistema de integração rural, que promove a venda casada de agrotóxicos (fertilizantes, herbicidas, inseticidas, fungicidas).
O Anuário do Fumo de 2003 trouxe a informação de que o setor fumageiro estaria parando de comercializar o brometo de metila, classificado como extremamente tóxico e banido mundo afora, depois que os estoques desse produto acabassem.
Ou seja, mesmo cientes do malefício que pudessem vir a causar à saúde e ao meio ambiente, venderiam o produto estocado aos fumicultores.
Esse exemplo mostra o respeito que as indústrias desse setor têm pela vida.

Também pudera, são as únicas que colocam no mercado produtos que causam a morte de 50% dos usuários que os consomem, conforme recomenda o fabricante.
E, pior, os receituários agronômicos que autorizam a comercialização dos agrotóxicos são conferidos por pessoas que sequer conhecem as propriedades onde eles serão utilizados.
Já faz parte do pacote tecnológico a indicação para ser aplicada a cada período da produção. É como se, por premonição, soubessem que naquele momento a “praga x” fosse requerer o “veneno y”, na dose “z”.
Total desrespeito à Lei dos Agrotóxicos, que fala em prescrição adequada, com diagnóstico caso a caso e posologia específica.
No Brasil a lavoura do fumo é de difícil mecanização e exige lida manual, cuidados que sujeitam os trabalhadores a um contato direto com os agrotóxicos e a própria seiva de nicotina da planta.
O sistema floating que dispõe as mudas em bandejas e as imergem em caldas de agrotóxicos até reduziu a carga de substâncias utilizadas, mas nem por isso retirou a toxidade delas, ou fez impedir a contaminação de mananciais e solos próximos às áreas de cultivo.
Outro triste exemplo da irresponsabilidade das fumageiras com a vida é que, sistematicamente, elas negam evidências científicas que apontam o potencial teratogênico do Flumetralin, substância ativa do anti-brotante Prime Plus, vastamente comercializado para ser aplicado na fase do desbrote das flores e folhas do fumo.
Esse produto causa má-formação fetal, problemas congênitos, é neurotóxico e cancerígeno.
Fosse outra a preocupação das fumageiras, o discurso de que as lavouras de fumo usam menos agrotóxicos do que as de tomate seriam mais comoventes.
Mas essa é apenas mais uma faceta do interesse comercial que as orientam.
Tudo para atender aos padrões de qualidade e exigência dos importadores de folhas de fumo e muito pouco, ou nada, para a saúde dos agricultores que, quando buscam atendimento em casos emergenciais, devem ir ao Sistema Único de Saúde (SUS), pois a indústria que exige e monitora a utilização dos agrotóxicos não oferece assistência alguma. Isso também não é surpresa, pois os fumantes acometidos por trombogeite obliterante, doença exclusivamente provocada pelo cigarro, que faz as partes periféricas do corpo necrosar, também não têm assistência alguma.

O Brasil foi um dos pioneiros na legislação de combate ao fumo. Como o senhor vê a legislação atualmente? Ela precisa de mudanças?
Guilherme Eidt – O pioneirismo do Brasil é reconhecido mundialmente e a Organização Mundial da Saúde referenda boa parte do programa nacional de controle do tabaco. Todavia, a legislação nacional é de meados da década de 1990 e hoje se encontra defasada frente ao acúmulo de evidências científicas reunidas na construção da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco, ratificada pelo país em 2006.
A Convenção responde às evidências de que a globalização da economia é fator determinante da transferência da carga epidêmica do tabagismo e de doenças relacionadas ao tabaco, de países desenvolvidos para países em desenvolvimento.
Ela sistematiza conjunto de políticas públicas com o objetivo claramente definido, em seu artigo 3°, de proteger as gerações presentes e futuras das devastadoras consequências sanitárias, sociais, ambientais e econômicas geradas pelo consumo e pela exposição à fumaça do tabaco, proporcionando uma referência para as medidas de controle do tabaco.
Por exemplo, a Lei Federal 9.294/1996 prevê área destinada exclusivamente ao fim de se fumar, devidamente isolada e com arejamento conveniente, o que está em flagrante inadequação às diretrizes do artigo 8º da Convenção, que determina medidas legislativas, executivas, administrativas e outras eficazes para proteção contra a exposição à fumaça do tabaco, com adoção de ambientes coletivos 100% livres de fumo.
O que se observa hoje é que essa exceção na lei federal permitiu toda sorte de violações de seu conteúdo. Primeiro, porque as áreas destinadas a fumantes não são exclusivamente destinadas para o fim de se fumar, e os trabalhadores que prestam serviços nestas áreas são expostos involuntariamente à poluição tabagística ambiental (PTA).
Segundo, porque o isolamento de áreas por sistemas de ventilação não é eficaz e, segundo a Sociedade Americana de Engenheiros de Aquecimento, Refrigeração e Condicionamento de Ar (ASHRAE), órgão de referência mundial em engenharia de ventilação, nenhuma tecnologia disponível é capaz de eliminar as 4.800 substâncias particuladas da fumaça do cigarro e reduzir os riscos de exposição à PTA.
O arejamento esconde dos olhos, mas não do coração, digamos, pois apenas ameniza o incômodo da fumaça e os odores do tabaco.

E, mesmo os sistemas ineficazes existentes são de elevado custo econômico e poucos estabelecimentos poderiam pagar por eles. Incentivar os fumódromos traria desequilíbrio na concorrência entre bares e restaurantes e, além de ser paliativo, chegaria apenas às classes econômicas privilegiadas, imprimindo tratamento desigual à população de baixa renda, o que é inaceitável do ponto de vista da saúde pública.
A interferência das indústrias do tabaco e seu interesse nos fumódromos decorrem do impacto econômico das leis proibitivas para o setor fumageiro.
Se cada fumante deixar de consumir somente três cigarros por dia, a queda nos lucros anuais já será da ordem de bilhões de reais.
A propósito, em recente recomendação ao Brasil, o Conselho Econômico e Social da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas apontou essa falha da legislação nacional e cobrou do Estado brasileiro uma resposta que seja adequada, eficaz e integral para garantir a prevenção da saúde pública, restringindo 100% o fumo em ambientes coletivos.


Como compreender que a indústria fumageira seja apontada como modelo de tecnologia e, ao mesmo tempo, exponha os trabalhadores desse ramo a péssimas condições de trabalho?
Guilherme Eidt – Costumo chamar de “engenharia biopolítica” aquele sistema de integração rural montado pelas indústrias fumageiras. Isso porque elas conseguem se valer de sofisticadas práticas de controle disciplinar, dividir no espaço, ordenar no tempo, compor no espaço-tempo as relações de força e saber que exercem, delineando relações de sujeição efetivas que fabricam os sujeitos e modelam sua subjetividade.
A capacidade de integração que constituem os dispositivos do saber possibilita a atualização, o remanejamento e a estabilização de relações de forças diferenciais que determinam as singularidades (afetos).

Ou seja, opera o alinhamento, a homogeneização das singularidades, colocando-as em séries e convergindo, como diz Deleuze, a multiplicidade de integrações locais, parciais, cada uma em afinidade com tais relações, tais pontos singulares. Constituem mecanismos operatórios que não explicam o poder, pois supõem as relações e se contentam em “fixá-las” sob uma função reprodutora e não produtora.
Trata-se de engenharia, porque essa homogeneização das singularidades, de fundamental importância para a constituição do capitalismo industrial e da sociedade moderna, passa pelas disciplinas de funcionamento do sistema de integração rural, neste caso da fumicultura, que criam aparelhos de saber e múltiplos domínios do conhecimento, e portam um discurso da verdade distinto do direito, alheio ao da lei e da regra.
Além disso, veiculam um discurso que é o de um código que não é o da lei, mas da normalização das condutas e práticas corporativas que são próprias das fumageiras.

E é uma engenharia “biopolítica”, porque faz viver de uma determinada maneira, influi na própria concepção de modo de vida, afetando as mais variadas dimensões da vida das pessoas, garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, como diz Foucault, e a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro; abandonando os fumicultores ao mercado e à morte segundo sua própria sorte.
Ela faz viver e deixa morrer. E, como outros pesquisadores já verificaram, a alta incidência de suicídio entre os trabalhadores rurais usuários de agrotóxicos em Venâncio Aires (RS), região predominantemente fumicultora, são exemplos que configuram manifestações visíveis de um modelo fundado na injustiça estrutural e na irresponsabilidade ambiental de empresas e governos.