Tania Cavalcante
Chefe da Divisão de Controle do Tabagismo do Instituto Nacional do Câncer (Inca)
O constante desenvolvimento tecnológico e geração de novos conhecimentos produzem mudanças na organização da vida humana e criam novas necessidades e novas demandas de liberdade e de proteção social.
Dentre essas situações, destaca-se o contexto contemporâneo de novas tecnologias de comunicação e informação, gerando necessidades de ação do Estado tanto para promover a inclusão digital, como para proteger a sociedade contra informações enganosas e práticas abusivas no ambiente da internet.
Também destaca-se o cenário dos debates sobre pesquisa envolvendo embriões humanos como resultado do acúmulo de conhecimento e desenvolvimento tecnológico no campo das pesquisas genéticas, demandando intervenção do Estado, a exemplo da Lei de Biossegurança, com o objetivo de organizar caminhos éticos para o progresso da ciência.
É nessa perspectiva que se inserem os debates em torno de medidas para proteger não fumantes dos riscos da exposição à fumaça ambiental de tabaco, o tabagismo passivo.
Até bem pouco tempo, fumar em ambientes fechados era um ato socialmente aceito.
No entanto essa aceitação entrou em xeque quando nos últimos dez anos estudos científicos passaram a demonstrar que a fumaça produzida pela queima de produtos de tabaco, como cigarros, charutos e outros, contamina cumulativamente ambientes internos com elementos cancerígenos e tóxicos, e que não fumantes expostos a essa fumaça, ou seja, os fumantes passivos sofrem um maior risco de terem câncer, infarto, infecções respiratórias dentre outros problemas de saúde.
Além disso, ao demonstrar que as tecnologias para o controle da ventilação em ambientes internos são ineficientes para reduzir a níveis aceitáveis a exposição e os riscos decorrentes do tabagismo passivo, a ciência também colocou em xeque as propostas de sistemas de ventilação para acomodar fumantes e não fumantes em ambientes internos.
Portanto, estamos diante de uma mudança de paradigma gerada pelo acúmulo de novos conhecimentos que colocam diante de qualquer Estado de Direito o dever de intervir para garantir para seus cidadãos o princípio constitucional do “direito à saúde e do direito à vida”.
Vários países já adotaram legislação banindo o fumo de ambientes internos como o Uruguai, Irlanda Escócia, França, Inglaterra, Áustria, Nova Zelândia; África do Sul. Além disso, 80% dos residentes no Canadá e 50% dos residentes nos EUA vivem em jurisdições livres de fumo.
É nessa perspectiva que o Poder Executivo brasileiro encaminha para o Congresso Nacional um projeto de Lei visando ajustar a legislação vigente aos novos paradigmas do conhecimento.
E para isso busca adotar o que a Organização Mundial de Saúde considera como a melhor prática para proteger todos dos riscos da poluição tabagística ambiental: a total proibição do consumo de produtos fumígenos em recintos coletivos públicos e privados.
No entanto, sempre que se fala em restringir o ato de fumar em ambientes fechados, saltam alguns defensores do "status quo", que seja por desconhecimento sobre a gravidade do risco do tabagismo passivo, seja por representarem setores que se sentem economicamente ameaçados por essa medida, utilizam um discurso distorcido sobre liberdade de escolha para induzir formadores de opinião a se colocarem contra essa iniciativa.
Não estamos falando aqui de intervenção do Estado para restringir o direito individual de fumar.
Qualquer um pode fazer o que quiser com seu corpo.
Entendemos que a liberdade de escolha é um Direito Universal, mas precisa ser compatível com as várias definições de liberdade que embasam a Declaração dos Direitos Universais do Homem.
Para Kant a liberdade de indivíduo estende-se até o ponto da compatibilidade com a liberdade dos outros.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão aprovada em agosto de 1789, durante a Revolução Francesa, no seu artigo 4º define liberdade como o direito de “poder fazer tudo o que não prejudique os outros”.
Ademais, as recentes declarações de direitos humanos reconhecem não só os direitos tradicionais clássicos, onde se inclui a liberdade privada, como também os direitos sociais, que exigem deveres e responsabilidades dos governos e da sociedade.
E garantir o direito à saúde e à vida é um deles.
Enfim, está perfeitamente justificado que os fumantes possam continuar a fumar, desde que não o façam em recintos coletivos.
E ao buscar o aperfeiçoamento da legislação nacional, o Estado brasileiro visa cumprir com sua obrigação de proteger os cidadãos brasileiros garantindo que ambientes 100% livres da fumaça de tabaco sejam direito de todos.