Empresa de cigarros pode ser socialmente responsável? Até quando vamos permitir o inaceitável?


Paula Johns

Coordenadora da Aliança de Controle do Tabagismo

Nos últimos anos, em especial após divulgação dos documentos secretos das empresas de cigarros nos anos 90, a indústria do tabaco vem investindo pesado na melhoria de sua imagem corporativa para tentar convencer o público de que mudou. E tem conseguido isso com relativo sucesso, a julgar pela habilidade da Souza Cruz de atrair pessoas como Bernardo Rezende, Paulo Henrique Amorim, Zeca Camargo e outros nomes públicos para promover sua imagem nos chamados “Diálogos Universitários” em todo o Brasil.
Isso sem mencionar seu sucesso no lobby para concorrer ao Índice de Sustentabilidade Empresarial - ISE da Bovespa, conseguir parceria com a Infraero, fazer doações para modernização do sistema judiciário, conseguir isenções pela Lei Rouanet para produzir agendas para os projetos sociais do Instituto Souza Cruz, entre outras façanhas.

Vale ressaltar que algumas dessas pessoas, instituições e órgãos de governo, mas não todos, entram nesse barco sem refletir sobre as conseqüências mais profundas dessa relação.

O que há de novidade sobre esse velho debate é a recente decisão judicial ocorrida nos EUA, onde as principais fabricantes de cigarros foram condenadas por fraude, enganação, corrupção, conluio e formação de quadrilha.

Judicialmente ficou comprovado, num documento de 1.683 páginas com riqueza de detalhes, que essa indústria mentiu por mais de cinco décadas e que continua a mentir.

Sempre defendemos que, por uma questão de princípios básicos, não há que se ter dúvidas quanto à impossibilidade de uma empresa de tabaco ser chamada de socialmente responsável. Seria mais honesto se a chamássemos de “lamentavelmente necessária”, afinal enquanto houver demanda por essa droga é melhor fornecer legalmente nicotina a milhões de usuários dependentes e lidar com o tema sob a ótica da saúde pública.

E nesse aspecto, apesar dos avanços dos últimos anos, ainda podemos fazer muita coisa, a começar por refletir sobre a missão das fabricantes de cigarros e compreender que essas empresas não são como outra empresa qualquer.

Em outras palavras, fundamentalmente, uma empresa cuja razão de ser é a produção, promoção e comercialização de um produto que vicia e mata metade de seus consumidores regulares não pode ser chamada de ética.

Infelizmente, quando se fala em tabagismo há uma percepção do tema centrada na questão do auto-cuidado. A conseqüência disso é que fumantes se sentem pressionados e discriminados, e não são raras as ocasiões em que são chamados, sem a menor parcimônia, de fedidos, sujos, imbecis, burros, suicidas, desrespeitosos, sem caráter, sem força de vontade e outros adjetivos que acompanham alguns sermões moralistas que, via de regra, se originam no reducionismo do auto-cuidado.

Tampouco se trata de chamá-los de coitadinhos, nem tão lá, nem tão acolá, mas podemos sim afirmar que os fumantes são vítimas de um contexto sócio-cultural que não tem porque ser perpetuado ad eternum.

Mudar as regras desse jogo está em nossas mãos. O que é inaceitável nesse cenário é que essa mesma sociedade (no sentido amplo do termo), que recrimina e condena o fumante, banalize a prática da empresa que promove esse produto e permita que ainda existam marketing e promoção de cigarros, que ainda se venda cigarros em qualquer jornaleiro, padaria, supermercado, venda, birosca, botequim, bar, restaurante, etc, etc.

É inadmissível que cigarros continuem sendo exibidos em letreiros luminosos como um passaporte para um mundo de aventuras, liberdade, viagens, e como um ritual de passagem para o mundo adulto. Propagandas que a indústria jura que são para convencer o fumante adulto a mudar de marca.

Não é possível que ainda se permita fumar em ambientes fechados, apesar de um oceano de evidências comprovarem que o tabagismo passivo é um grave problema de saúde pública. Não faz sentido que os cigarros brasileiros sejam o sexto mais barato do mundo, e que a arrecadação de seus tributos não cubra nem metade do que se gasta com os impactos provocados pelo seu consumo.

Não é justo que o Poder Judiciário no Brasil não veja problema algum em receber doações da Souza Cruz para modernização do seu sistema ao mesmo tempo em que centenas de ações tramitam contra essa mesma empresa.

É inaceitável que o símbolo nacional das campanhas do Ministério da Saúde, o Sr. José Carlos Marques Carneiro -- cuja imagem é impressa nos maços de cigarro da própria Souza Cruz, e que começou a fumar quando não havia nenhuma advertência, num período de bombardeio de publicidade em todas as mídias -- não receba uma indenização para viver com mais dignidade o resto de seus dias.

Hoje, a virilidade do homem de Marlboro virou impotência, o glamour de Humphrey Bogart virou falta de charme. Mesmo assim, milhares de adolescentes se tornam dependentes de nicotina todos os dias e milhões de pessoas continuam a fumar --ou por falta de acesso a tratamentos ou por vergonha buscá-los -- e reagem contra as medidas anti-tabagismo (erroneamente chamadas de anti-tabagistas) de forma defensiva, sem falar naquelas que tentam parar de fumar e não conseguem e se frustram.

Isso porque fumar ainda é vendido como se fosse uma livre-opção para adultos. Será que alguém que já fumou e que fuma, ou que conviva com um ente querido gravemente comprometido em função da sua “escolha”, ou “decisão inteligente”, realmente acredita nisso?

A chegada a hora de focar no contexto, e nesse sentido, voltando à decisão judicial dos EUA, temos que ter coragem de repudiar as, no mínimo hipócritas, ações de Responsabilidade Social Empresarial da indústria do tabaco, de nos recusarmos a sentar ao seu lado, ou promover a boa imagem da empresa.

A indústria do tabaco, como qualquer outro negócio, é obrigada a lucrar para atender as expectativas de seus acionistas e permanecer no mercado. Nada mais justo, não fosse seu produto o que é: causador de dependência química, leva à morte 50 % de seus usuários. Para torná-lo atraente e captar seus clientes, precisa ter estratégias cínicas e hipócritas. Essa é sua missão, mentir, enganar, esconder fatos, manipular pesquisas. E nada mais.

O que cada um de nós pode fazer? Podemos deixar de ser acionistas, ou passar a ser acionistas para mudar as regras desse jogo, podemos nos mobilizar para obrigar a indústria do tabaco a não fazer nenhum tipo de promoção ou marketing, a vender seus produtos embaixo do balcão, a não se opor aos ambientes livres de fumo, a não se opor a aumento de preços, a tornar essas empresas inelegíveis para benefícios fiscais, como a lei Rouanet, entre outras medidas que de verdade teriam impacto sobre o consumo.

Quanto à decisão judicial recente dos EUA, vale mencionar que a primeira reação da Philip Morris e BAT – British American Tobacco, controladora da Souza Cruz, foi pedir que a proibição da utilização dos termos “light”, baixos teores ou outras terminologias que passem a falsa impressão de cigarros menos nocivos, contida na decisão judicial, não valesse para os mercados externos.

O Brasil proibiu a utilização desses falsos descritores em 2001, mas enquanto brigava contra a medida, a indústria desenvolveu a campanha do sistema de cores e terminamos por trocar o seis por meia dúzia. Para bom entendedor, meia palavra basta.